segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Europa: o Estado do mal-estar social

O enterro da Europa social percorre o noticiário econômico há anos, mas nas últimas horas os dobrados fúnebres ecoam decibéis cada vez mais sombrios. Grécia dobra a aposta na ortodoxia; Itália vai às cordas na rendição aos mercados; Sarkozy anuncia novos cortes de gastos e o aumento na idade mínima da aposentadoria.

O quase invisível primeiro ministro François Fillon ocupou a cena nesta 2ª feira para poupar o presidente francês do ataque aos direitos republicanos. Fillon anunciou um nova volta na turquesa do arrocho com um sustenido de terrorismo econômico: "Falência não é mais uma palavra abstrata", escandiu o burocrata para lubrificar um corte adicional de 8 bi de euros, três meses depois de Sarkozy já haver subtraído 12 bi do gasto público francês.

Num sinal de reverência à ditadura dos mercados, o burocrata prometeu para 2012 o orçamento mais duro da história francesa desde 1945. Um modo heróico de dizer que Paris se ajoelha às exigências da ortodoxia financeira.

Ilude-se assim Paris, como Zapatero também se iludiu e Berlusconi acreditou que não seria jogado nas cordas, que é onde se encontra nas últimas horas, sob uma saraivada de golpes dos credores da dívida pública, de suas próprias bases e das ruas.

Na Alemanha, a desengonçada Angela Merkel tenta escapar do mesmo torniquete introduzindo compassos de polca na marcha fúnebre do euro. Enquanto seus pares ardem entre a insolvência e o arrocho, ela acena com a instituição de um salário mínimo alemão (leia reportagem de Flávio Aguiar, nesta pág) e cortes de impostos da ordem de 6 bi de euros em benefício dos assalariados. Embora o tom seja contracíclico, a regência é de pura ortodoxia. Os 'incentivos' previstos por Merkel escorrem pelo ralo da irrelevância histórica servindo como mero adereço na marcha batida rumo ao abismo da UE.

Diante do enxôfre que pesteia o ambiente econômico, Merkel borrifa módicas gotas de perfume no ar irrespirável a sua volta: os incentivos anunciados pela principal locomotiva da UE --a única que ainda tem lenha na fornalha para contrastar a crise-- equivalem a irrisórios 2% do PIB alemão. Pior: devem vigorar em duas etapas, entre 2013 e 2014. Juntas, França e Alemanha somam quase a metade da força econômica do euro e usam sua força para acelerar a espiral descendente.

Na rendição desastrosa da Europa à entropia financista dissolvem-se algumas das mais valiosas conquistas trazidas do século XX no embate entre democracia e capitalismo. Entre elas, a supremacia da Política sobre a lógica auto-destrutiva dos mercados; a lição keynesiana, aprendida a ferro e fogo na guerra e no pós-guerra, segundo a qual uma devastação econômico-financeira não se combate com mais recessão e sim com políticas coordenadas de financiamento, emprego e produção; a convicção progressista de que o Estado é parte da solução nas crises produzidas pelos mercados e não o réu a ser imolado no altar dos interesses privados. Mas, sobretudo, o discernimento de que o interesse coletivo materializado em direitos sociais e gestão democrática da econômia forma o patrimônio mais importante da engrenagem moderna do desenvolvimento.

A Europa é o epicentro da crise do capitalismo;num certo sentido, é, também o epicentro da crise da civilização em nosso tempo. A perspectiva de uma vitória avassaladora da extrema direita ortodoxa na Espanha, nas eleições gerais do próximo dia 20, soa como um Rubicão histórico. A reiteração doentia da lógica e das forças que originaram a crise e sucessivamente, fizeram-na predominar desde a periferia até o coração rico do euro evidencia a deriva de um mundo em que os interesses dominantes não tem mais nada a propor, exceto edulcorar a morte de uma época com a repetição catatônica da receita do mal-estar social.

Novos atores e novos partidos terão que ocupar a cena para interromper o cortejo da regressividade e da violência econômica e retomar assim um processo civilizatório, do qual o Estado do Bem -Estar Social europeu já foi um dos pilares mais admirados.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=808