A princípio, tentaremos enfocar na densidade da obra de Daniel Lins acerca do Dossiê: “Entre Deleuze e a Educação” a esplêndida imagem do “mangue” como ponto de convergência das ideias desenvolvidas ao longo do texto. Depois, faremos questão de destacar a dinâmica do pensamento de Gilles Deleuze nos desdobramentos dos conceitos filosóficos de devir, rizoma, platôs, como aporte de uma pedagogia molar e molecular, claramente assumidos pelo autor, de modo que o resumo se culminará com a noção de saber ligado a sabor e com a experiência do amor pela educação.
O texto Dossiê: “Entre Deluze e a Educação” se apropria de uma bela imagem, a imagem do Mangue, utilizado aqui pelo autor Daniel Lins para nos mostrar a riqueza do pensamento rizomático de Deleuze atrelado a uma pedagogia.
Na vida acadêmica ou na vida de um professor é muito salutar quando se alcança o estágio maduro do magistério e, desaprendendo a falar academicamente uma linguagem técnica, aprende-se a falar por meio de imagens. As imagens vêm mais facilmente à cabeça e são deliciosas, pois, quando se usa uma imagem que fala mais do que o texto, percebe-se “a diferenciação, a contemplação vibrátil, sem determinação, mergulhada numa visão que inventa a visão do que é visto sem pontos de referencia nem muletas”. (Lins, 2005, p.10). Eis a imagem:
“- Seu Pedro, onde começa o mangue?
- Professor! Olhe o mangue! Não tem nem começo, nem fim: O mangue só tem meio!”
(Diálogo com um velho pescador, na Ilha do Pinto, em Fortim, Ceará, abril de 2004, in Lins, 2005, p. 10)
Assim deve ser uma escola, sem principio e sem fim, mas com meio, inteiramente inserida na vivência do mundo e mergulhada no aqui e agora das situações existenciais. Uma escola que simboliza um “imenso manguezal” a se espraiar “no entrelaçamento de proteínas, calorias, gazes, lama, gozos, prazeres, detritos e... ouro”(Lins, 2005, p.10). O seu ouro é a diferença ou a riqueza do manguezal, como se a criança/aluno representasse o grande tesouro da escola que, talvez, fosse uma obra em construção e que a escola sua intercessora privilegiada na autoconstrução, sob a condição de que a transmissão de saber não se confunda com a transmissão de poder em que o aluno é tratado supostamente a querer, a ouvir, a aceitar e a obedecer.
Tal cogitação entre escola e mangue merece, como dissemos, uma deferência no texto de Daniel Lins, haja vista a feliz metáfora que estabelece com a ideia de rizoma deleuziana:
“Por meio da questão do novo, a função da Mangue’s School não é mais a de responder a uma necessidade de verdade, ou de abrir ao conhecimento do real, mas provocar novas possibilidades de vida. O novo é assim retomado como uma exigência de criação que instiga a promoção de forças capazes de transformar o presente levando-o para novas vias, segundo a formulação de Nietzsche: ‘Agir contra o passado, e desse modo sobre o presente em favor de um tempo por vir’”(Lins, 2005, p. 12).
Parece-nos clara a tendência de Deleuze em afirmar a vida como princípio de novidade e da diferença, ou seja, como novidade, como devir, vir a ser heraclitiano, movimento e, acima de tudo, “diferença vital”.
Sendo assim, é uma recorrente na pedagogia rizomática o apoderamento dinâmico e potente, sobretudo atual, das filosofias de Nietzsche e Deleuze. É uma constante no interior do texto em questão o ir e vir, como a imagem da maré ou a de um rio do pensamento vital de Nietzsche.
“A pedagogia rizomática, neste sentido, trabalha sempre com o novo. Eis, pois, toda a sua dinâmica: o que é(a memória) dá lugar ao que não é ainda(o novo, que implica o esquecimento). O novo é o devir, é o por vir. Nem genealogia, nem raízes: rizoma, abertura para a imanência, num eterno retorno em que o que retorna são os blocos de diferença em forma de devires. É o próprio real que aparece como produção do novo, o que supõe uma passagem do agente – itinerante, por definição – por uma experiência singular. O novo, cuja força maior é seu caráter primitivo ou imediato da novidade, ora posto pela experiência, ora pelo ser, não significa que ele se apresente espontaneamente nem que seja reconhecido imediatamente como tal pelo pensamento, mesmo porque o pensamento, muitas vezes dependente da opinião, é impotente para acolher o novo”(Lins, 2005, p. 11).
Segundo Deleuze, o novo começa quando rompe com a opinião e reivindica a criação de valores novos através da análise da imagem do pensamento, que é eminentemente filosófico.
Um outro aspecto interessante que gostaríamos de separar no universo textual de Daniel Lins, embora seja consequência de uma pedagogia rizomática e da escola mangue até aqui apresentados, tão somente advindo das ramificações que não se prendem em nenhum território porque desterritorializa, desprende-se o tempo todo, move-se em sentido pivotante, no dizer de Deleuze(Deleuze & Guattari, 2000, p. 15), a exemplo de uma batata desenraizada ou de um mangue que flutua na água, é de tal modo, a pedagogia dos platôs. “Um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs(...). Chamamos platô toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira que formem e estendam um rizoma”(Deleuze & Guattari, 2000, p. 33).
Possivelmente, em decorrência da bela imagem do manguezal, bem como da fundamentação rizomática deleuziana, desencadeando-se no texto uma pedagogia rizomática e uma pedagogia dos platôs, observa-se uma interação destes conceitos com a pedagogia das escolas atuais no que tange a aprendizagem, o aluno, o ensinar e a instituição como um todo. Como elaborar, afinal, ou produzir um Programa/Projeto que se aproprie das ideias desencadeadas a partir da noção de devir, rizoma, embutidos nos conceitos filosóficos de Gilles Deleuze?
“É porque a Escola coabita com diferenças e singularidades que alguns podem adaptar-se à moral do rebanho; outros devem ter o direito de se rebelar contra um modelo pedagógico pleno de boas intenções, mas estrangeiro às multiplicidades. O programa – oposto do rizoma – impõe a todos a obediência às setas e indicações. O projeto, diferentemente do programa, experimenta, desconfia das verdades pedagógicas ‘verdadeiras’. Embora o programa tenha sua importância em todo projeto educativo, ele é apenas um instrumento cooptado pelo provisório, molar, identitário”(Lins, 2005, p. 17).
Com a noção inovadora de Programa/Projeto proposto por Daniel Lins, em virtude do que já dissemos até então, defende-se dois novos horizontes para a pedagogia, que são: a pedagogia molar e a pedagogia molecular.
“Molar é aqui compreendido não como separação ou oposição. De fato, se é verdade que o molar delimita os nós, os laços, a arborescência, o molecular une-os numa desunião criativa instauradora, inclusive, de possíveis alianças. Atravessado(molar) e atravessador(molecular) celebram núpcias com intensidades singulares e diferenciadas, num movimento permanente de contaminação, dissidência e resistência, sob o signo de linhas de fuga e agenciamentos maquínicos, que conduzem um futuro sem devir e estruturas arborescentes para devires múltiplos, multiplicadores”(Lins, 2005, p. 03).
Isto posto, o que se vislumbra numa pedagogia molecular é o fato de, perfeitamente, ser rizomática. Trata-se de uma pedagogia da desconstrução e da diferença, como também da singularidade. Uma pedagogia que não trabalha com formas, mas com encontros nômades, desejos, encruzilhadas e bifurcações.
É uma pedagogia que nos proporciona ir até a etimologia da palavra saber para resgatar o seu significado original conjugado a sabor, uma vez que a palavra sapientia, em latim, quer dizer saber, isto é, “saboroso”. Sapio, em latim, quer dizer “eu degusto”. O impressionante, com isso, não é o conhecer com os olhos, como acontece com a ciência, mas o conhecer com a boca. A vida é para ser degustada, a vida é para ser experimentada sob a forma de desejo, de prazer, conforme o próprio texto nos aponta:
“Os saberes como sabores não mudam a realidade finita dos homens e, tampouco, a angústia vinculada à morte. A realidade continua sendo o que ela é, mas o olhar que se tem sobre ela transforma não força das coisas nos seus paradoxos e incertezas, mas atribui ao ‘incompreensível’, sob o olhar ético e estético, para além do bem e do mal, uma realidade artística, criadora, isenta do imaginário divino, do juízo, da verdade, da punição e do castigo”(Lins, 2005, p. 02).
Desse modo, a pedagogia molecular nos insere nessa proposta de sabedoria tão bem apresentada a pouco, desprovida do medo e comprometida com o que está aí, lançado no mundo, jogado na existência, num movimento molar inserido e projetado no molecular, o brincar, como a aprendizagem, é brincar com desejo e não contra o desejo.
Portanto, é na linha do movimento molar entrelaçado com o projeto molecular pedagógico engendrado pelas categorias do pensar deleuziano de devir e de rizoma que a experiência da aprendizagem vem à tona na roupagem da experiência do amor:
“Só se experimenta por amor, só se aprende por amor, só se ensina por amor, só se escreve por amor, só se faz amor por amor. É preciso muito trabalho para não viver idiota, para não morrer idiota. Aprender é também aprender a escrever, e a escrita é uma carta de amor. Ora, o amor é da ordem do experimento e não do programa. Experimentar significa também participar ativamente, engajar-se no sentido em que o pensamento não é simplesmente espectador ou contemplador, mas participa de maneira ativa daquilo que tenta. Enfim, na experimentação, o pensamento engaja-se num processo do qual desconhece a saída e o resultado, e é nisso que ele está profundamente vinculado à experiência do novo. O novo é a eternidade, é a invenção”(Lins, 2005, p. 19)
Silmara Rejanny Nobre de Azevedo Meira
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